“NÃO HÁ OUTRO RIO AZUL IGUAL AO MEU”
Carminda Ferreira é uma mulher esclarecida e determinada. Sabe o que quer. O que pensa do mundo e por onde vai. Em pequena ouvia a Rádio Argel, com um copo de água sobre a telefonia para a PIDE, não identificar as ondas hertzianas. Tem uma casa e uma família recheada de afetos e não compreende porque os nossos governantes não aproveitam as potencialidades do país para sair da crise. É católica, crente e tem do Homem a visão material mas, também, a espiritual. Se voltasse atrás não mudava nada na sua vida. É regionalista, adora a serra da Arrábida e a caldeirada à setubalense
Como foi a sua infância?
Tranquila. Podia brincar livremente na rua. À noite, o meu pai lia-nos histórias, o jornal, romances, fazíamos versos, palavras cruzadas, escutávamos a Rádio Argel (com um copo de água em cima da telefonia, porque se acreditava, na altura, que desta forma a PIDE não conseguia identificar as ondas de rádio). Lembro-me das conversas sobre política, lá em casa, desde que me entendo. A 4ª classe foi feita na escola do Bairro da Conceição. Mantenho amizades de infância e do tempo de escola. Em alguns casos, os nossos filhos são igualmente amigos.
O primeiro amor…
Um colega de escola, por volta dos doze, treze anos. Durou dias. Depois foi o meu marido, que comecei a namorar aos 14 anos… até hoje.
E o primeiro emprego…
Comecei a trabalhar aos dezoito anos, no Serviço Social do Hospital de Setúbal. O ordenado não chegava a dois mil escudos, em moeda "portuguesa".
Como é a sua casa? Como a define?
É o lugar da família. Foi sendo preenchida em função de afectos. Nesse sentido, conta histórias: "Aquela cadeira", "aquele quadro" oferecido por um amigo de muitos anos, etc. É uma casa normal, sem luxo mas confortável.
O que pensa do mundo?
Ouço frequentemente dizer que o mundo está em transição, em busca de novos valores. Não sei se será. Apercebo-me da mesma barbárie milenar, só que em versão sofisticada. Promove-se a guerra em terra alheia, com fins económicos. Continuamos a assistir à exploração do homem, à escravização, a êxodos para fugir à fome. Vivemos uma era de primado do capitalismo desenfreado. É um mundo hedonista, onde os valores se relativizaram e nalguns casos se perderam. Parece que nada aprendemos com a História
Sente-se realizada humana e profissionalmente?
Do ponto de vista humano, ao olharmos à nossa volta, penso que dificilmente alguém poderá sentir-se realizado. Há muito por fazer, principalmente na área social. A responsabilidade social diz também respeito a cada um de nós. E deve começar com aqueles que nos estão mais próximos. Hoje em dia, ninguém tem tempo. Abandonam-se os familiares fragilizados pela idade e pela doença. Morre-se sozinho, com familiares em disputa pelos bens do moribundo. E não se pense que estas situações ocorrem apenas em certos estratos sociais ou que são pouco frequentes. Sei do que falo. Já dirigi uma IPSS. Que ninguém pense que já fez a sua obrigação. Do ponto de vista profissional não posso queixar-me. Passei pela Ministério da Saúde, pela Escola Superior de Educação, pelo IEFP, onde vivi uma experiencia extraordinariamente enriquecedora do ponto de vista profissional e humano. Tenho uma admiração extraordinária por quem ali trabalha, porque se confronta diariamente com o drama do nosso tempo: o desemprego, a insegurança, a incerteza. Ali, é-se um pouco de tudo: profissional, conselheiro, psicólogo, enfim. Não é um trabalho, é uma missão. De resto, trabalho e vivo na cidade onde nasci, onde nasceram os meus avós, os meus pais e os meus filhos. Não a troco por nenhuma outra, porque nenhuma outra tem uma Serra da Arrábida, nem um rio azul igual ao meu.
Como se resolve a crise?
Não existe nada de novo debaixo do sol. Basta olharmos para países que saíram completamente arrasados da Segunda Guerra Mundial, como é o caso da Alemanha, que em poucas décadas renasceu das cinzas. Ora: os portugueses são bons trabalhadores em qualquer parte do mundo; A nossa mão de obra é qualificada e barata. Temos recursos naturais: terra, mar, sol. O que é que nos falta, que não nos vemos livres da nossa ancestral incapacidade governativa? Falta-nos maior envolvimento social no exercício da cidadania. E solidariedade. Temos de ser nós a exigir contas a quem nos governa. Não podemos continuar de cabeça baixa, a achar que enquanto for só o meu vizinho a suportar a crise, eu estou a salvo e nada tenho com isso. Não é a abstenção que resolve o problema político, antes pelo contrário. Esta abstenção coloca em risco a democracia. A História diz-nos que é nas alturas vulneráveis que surgem as ditaduras. É preciso cuidado.
Deus criou o Homem, ou foi o Homem quem criou Deus?
Cito "Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra. De todas as coisas visíveis e invisíveis. Por Ele, todas as coisas foram feitas…" Sou crente, naturalmente.
Se foi o Homem quem criou Deus, quem foi então que criou o conceito de Deus? O Homem não é apenas um corpo físico. É também espírito. E esse espírito tem um criador. O mesmo que criou todas as coisas visíveis e invisíveis…
Se pudesse voltar atrás o que mudaria na sua vida?
Creio que as decisões que tomamos na vida são sempre as melhores. Pelo menos são as que nos pareceram as melhores na altura. As possíveis. Também nada nos garante que se tivéssemos tomado outras opções, que estas resultariam melhor ou nos tornariam mais felizes, ou mais felizes os que nos cercam. Acho que não mudava nada. Apenas teria dito mais vezes o quanto amava os meus familiares e amigos que já partiram. E não foram poucos. É importante verbalizarmos também os nossos afetos.
Que faz no presente e que projectos para o futuro?
Trabalho no Núcleo de Planeamento do CDSS. Estou na Assembleia Municipal, no segundo mandato. Talvez continuar a intervenção na área social, e publicar um trabalho de investigação em História, que se encontra a praticamente concluído há anos.
CAIXA DAS PALAVRAS
Um destino
Paris
Um livro
Cem anos de solidão (Gabriel G. Marques)
Uma música
Avé Maria (Bach)
Um ídolo
O meu pai
Um prato
Caldeirada à setubalense
Um conceito
Integridade