“ACREDITO QUE CONSEGUIREI REALIZAR OS NOVOS PROJETOS”
Maria das Dores Meira é presidente da Câmara Muncipal de Setúbal. Teve uma infância normal com uma educação tradicional. O seu primeiro amor foi o seu marido e foi militante do MDP/CDE antes de entrar no Partido Comunista. Do mundo diz que é bonito mas o sofrimento que comporta é difícil de imaginar. Para si a crise resolve-se com a mudança de políticas. É crente em Deus e se pudesse voltar atrás apenas mudaria questões do foro pessoal. Álvaro Cunhal é o seu ídolo e a caldeirada o prato preferido
Como foi a sua infância?
Posso dizer que tive uma infância feliz, com educação tradicional, normal para a época.
Vivi nas Portas de Benfica, fiz o meu percurso religioso na Igreja de Benfica, a comunhão, a participação nos escuteiros. Brincava ao Mata, às escondidas, brincava na mata de Benfica − eram outros tempos. Foi neste bairro que vi pela primeira vez televisão num café perto da Calçada do Tojal, onde morava, e recordo-me com toda a clareza, de em 1966, julgo que por causa de um campeonato do mundo, a minha professora primária ter interrompido a aula para irmos ver nesse café o jogo Portugal-Inglaterra. Lembro-me bem da tristeza de ver o Eusébio falhar um golo decisivo, mas não me lembro de muitos mais pormenores. Agora, do que lembro é de todas as meninas da minha classe terem chorado baba e ranho pelo golo que devia ter entrado. A partir daí, claro, todas passámos a ser do Benfica, em particular pelo carinho que o Eusébio nos transmitia.
O primeiro amor…
Aos 14 anos, com aquele que viria a ser meu marido e pai do meu filho. O amor dos 14 anos é sempre diferente. Naquela idade as coisas têm outro cheiro, o sol parece que brilha mais, as palavras têm uma sonoridade mais bela e, quando conjugadas com a naturalidade que só se tem naquela idade e ditas ao ouvido, até fazem outro sentido que a rotina dos dias, dos anos, acaba por tornar normal. Podiam até ser palavras absolutamente comuns, mas ditas por quem se ama aos 14 anos, aí era outra coisa. Enfim, nessa idade temos outro olhar do mundo, da vida. Quando se é assim tão jovem, tudo é possível, o sonho é ilimitado, ainda que, no meu caso, continue a sonhar ilimitadamente e a querer amar, porque o amor pode ser por uma pessoa, mas também por uma cidade como Setúbal, pela qual sinto um amor como se fosse o primeiro.
E o primeiro emprego…
O meu primeiro emprego foi num escritório lisboeta de uma empresa de registo de marcas e patentes, atividade na qual mais tarde viria a fazer carreira, tornando-me numa das mais conhecidas empresárias na área. Essa é, aliás, a minha área de atividade profissional, da qual sempre dependi para viver e à qual voltarei, muito provavelmente, quando deixar de ser autarca.
Como é a sua casa? Como a define?
Confortável e acolhedora, mas isto digo eu. Quem a conhece diz que é muito mais do que isso e eu compreendo perfeitamente. Tenho um enorme prazer na decoração, no detalhe, nos pormenores, e não apenas na minha casa. Escolho e procuro muito peças que me interessam, tenho um enorme prazer na conjugação destas peças, do mobiliário, das cores e dos tecidos. Diria que é quase um passatempo que tenho...
O que pensa do mundo?
É tão bonito que é difícil imaginar o sofrimento que comporta. Quando olho para o que se passa nesta nossa casa comum, para as desigualdades, para a injustiça, para a deficiente repartição dos recursos, sinto uma enorme revolta. Nem é preciso ir muito longe para encontrar esta injustiça. Basta sair à rua. Ainda há dias lia nos jornais que, apesar da crise, as 25 maiores fortunas do país continuam a crescer, o que é extraordinário. Ou talvez não, se tivermos em consideração a visão neoliberal, absolutamente desligada das necessidades das pessoas, que o atual governo tem, e o absoluto servilismo em relação aos famosos e míticos mercados sem cara nem coração. Basta ver que estas 25 maiores fortunas totalizam, este ano, 16,7 mil milhões de euros, mais do que em 2012, ou seja, 10% do PIB nacional. Imagine o que podíamos fazer com estes milhões todos, em especial quando vemos famílias inteiras desempregadas, funcionários públicos que ganham 675 euros considerados como trabalhadores muito bem pagos…
Sente-se realizada humana e profissionalmente?
Sim. É claro que, como ser humano, pretendo mais felicidade, mas, tendo em linha de conta que existem pessoas em piores circunstâncias do que eu, então sou uma pessoa realizada, para o que muito contribui, naturalmente, a minha condição de autarca empenhada politicamente, atividade que me fascinou logo em 1974, graças à revolução de Abril. Foi quando aderi ao MDP-CDE, porque achava, na altura, que ainda não tinha a necessária fibra política para aderir ao PCP, por tudo aquilo que este partido e as pessoas que o integravam representavam para mim e para o País. Contudo, antes de aderir ao MDP já conhecia bem, da Escola Emídio Navarro, em Almada, para onde fui aos 13 anos, o que era a PIDE e o fascismo e a repulsa que me causava.
Quando aderi ao MDP tinha 17 anos. Achei então que tinha de passar por uma espécie de aprendizagem. Achava que o PCP era, e continuará a ser, um partido com gente de enorme qualidade política e humana e com uma visão do mundo e da sociedade com a qual continuo a identificar-me. Posso dizer, também por causa deste percurso e da minha identificação política e partidária, com o que isso representa na defesa dos direitos dos mais desfavorecidos, dos trabalhadores, de todos os portugueses, que me sinto realizada humana e profissionalmente, embora, por vezes, ache que tenha desvalorizado um pouco os aspetos pessoais da minha vida em prol desta atividade pública que decidi assumir.
Como se resolve a crise?
Com a mudança de políticas e dos atuais protagonistas políticos, que já demonstraram, sem qualquer dúvida, que o caminho que escolheram é o mais errado que podia haver. Não só os problemas dos portugueses não se resolveram, como se agravam cada vez mais com a anulação de conquistas verdadeiramente civilizacionais. Muitos exemplos haverá, mas dou apenas dois, mais recentes, que me parecem paradigmáticos do desrespeito absoluto pelas pessoas que este Governo pratica: a questão das pensões, na qual até o Presidente da República tem sérias e fundamentadas dúvidas, e a questão do aumento do horário de trabalho da função pública, em que se põe os funcionários a trabalhar mais cinco horas por semana, sem a devida compensação e depois de já se lhes ter baixado salários e retirado subsídios de férias e de Natal...
A presente crise, já todos o percebemos, só se resolve com a renegociação dos termos e dos prazos de pagamento de uma dívida soberana que é impagável − e, provalmente, numa parte significativa, ilegítima − nos termos que nos têm imposto. Exceto se fizermos o que dizia há dias um ministro do atual Governo, que defendia que teríamos de trabalhar mais de um ano sem comer, sem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada só para pagar a dívida. Parece-me que quem diz estas coisas já perdeu toda a capacidade de encontrar as soluções necessárias…
Deus criou o Homem, ou foi o Homem quem criou Deus?
Depende da fé e eu sou crente, o que dá a resposta à sua questão. A fé religiosa é, para mim, muito importante e não é incompatível com o que quer que seja. Permite-me o reencontro comigo própria, a reflexão profunda e até encontrar muitos pontos de contacto com o meu posicionamento ideológico. Destaco, aliás, o que disse há dias o Papa Francisco sobre o capitalismo e a procura desenfreada e desumana do lucro. Dizia ele que “enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível erradicar a violência”. Tudo o que ele disse merecia ser aqui citado, mas fico-me apenas por esta ideia, que é muito atual e uma muito séria e adequada análise dos tempos que vivemos.
Se pudesse voltar atrás o que mudaria na sua vida?
Praticamente nada. Orgulho-me do meu percurso pessoal, profissional, político e social, embora, naturalmente, e como qualquer um de nós, se pudesse voltar atrás faria algumas coisas do foro pessoal de forma diferente.
Que faz no presente e que projetos para o futuro?
Sou presidente da Câmara Municipal de Setúbal e quero desempenhar o melhor que souber e puder esta função para construir com os setubalenses e azeitonenses uma melhor cidade. Temos projetos em curso e já bastante adiantados que vão fazer da nossa cidade uma cidade melhor, mais atrativa, como maior capacidade de gerar riqueza, porque as cidades, para serem atrativas para promover a geração de riqueza e desenvolvimento têm de ter muito mais do que apenas parques industriais. Têm de ter redes de ensino qualificadas, espaços públicos atrativos e cuidados, boas vias de circulação rodoviária e boas acessibilidades, equipamentos culturais. Isto é o que atrai mão-de-obra qualificada para aqui se estabelecer e viver. Por isso, temos vários projetos muito importantes para modernizar mais, nos próximos quatro anos, esta que é a Capital da Margem Norte do Sado, dos quais apenas quero referir três: a nova biblioteca no Largo José Afonso, o Terminal 7, que complementa as ações de requalificação e abertura da nossa frente ribeirinha, e o Parque Urbano da Várzea, que, além de constituir um espaço para a fruição pública, motivará uma verdadeira revolução na circulação rodoviária na principal entrada da cidade e, mais importante do que isso, permitirá minorar um grave problema que temos que é o das cheias em dias de chuva e de maré cheia, pois neste parque serão constituídas bacias de retenção das águas da ribeira do Livramento, que só serão libertadas para a rede de escoamento de pluviais quando existam condições para tal.
Projetos, como vê, são muitos e importantes. Vamos agora à procura de tempo e de financiamento para os concretizar. Acredito que conseguirei.
CAIXA DAS PALAVRAS
Um destino
Ásia
Um livro
Capitães da Areia, de Jorge Amado
Uma música
“Pedra Filosofal”, poema de António Gedeão cantado por Manuel Freire
Um ídolo
Álvaro Cunhal
Um prato
Caldeirada
Um conceito
O que é para cada um de nós a beleza interior